Por: Nayla
Estão todos mortos - diziam os
soldados, em alemão, enquanto caminhavam descuidosamente sobre os corpos. Eu
estava lá, tentando de todas as formas controlar minha respiração, enquanto um
deles pisava displicentemente em meus dedos. Diferentemente dos demais, eu
sobrevivi, mas eles não podiam saber, ninguém podia. A essa altura dos
acontecimentos ninguém era confiável, muito menos soldados desconhecidos.
Algumas horas depois, quando o som dos
coturnos e fuzis se distanciaram em seus carros, o silêncio pairou sobre a
imensidão. Levantei-me rapidamente e peguei entre as bagagens dos mortos todos
os suprimentos que me podiam ser úteis. Um pouco de água, uma embalagem
qualquer contendo algum biscoito, uma faca, uma corda e um pouco de chá. Minha
perna direita tinha um corte profundo com um sangramento que se estendida pela
minha coxa. Estanquei o sangue amarrando
bem firme com um pedaço de pano que encontrei. Sei que precisaria de pontos,
mas não havia instrumentos necessários ali e eu não podia perder tempo com isso.
Sinto o vento soprar mais forte, olho
para trás, vejo o mar. Meus cabelos castanhos voam e tocam minha pele pálida e
úmida. Olho para o outro lado além das montanhas. Eu sei que chegou a hora da
despedida. Não sei bem onde estou, mas sei que é longe e tenho certeza que
nunca mais estarei em casa. Minhas mãos frias tocam o colar em meu pescoço, uma
lágrima quente escorre no meu rosto, meus pensamentos estão com Said, mas sei
que nunca mais o verei e nunca saberei se ele sobreviveu.
Não há tempo pra isso, digo a mim
mesma. Coloco o colar dentro da blusa e enrolo rapidamente o véu sobre a
cabeça. Ninguém pode saber quem sou, nem me reconhecer, caso contrário estarei
morta. Termino de arrumar minhas coisas, acaricio o rosto de uma criança e faço
uma prece pelos mortos. Sigo em frente, sem olhar para trás, sem lágrimas, como
ele faria, como sempre fizemos.
Após quase um mês caminhando sozinha em
terras desconhecidas finalmente avisto uma cidade aparentemente abandonada. Mas
todo cuidado é pouco quando se trata de lugares assim, afinal há grupos de
saqueadores por toda parte e costumam se violentos quando encontram mulheres sozinhas
e não estou forte o suficiente para lutar.
O mundo não é mais o mesmo. Um século
marcado por de conflitos políticos, econômicos, sociais e étnico-religiosos nos
transformaram em objetos de um sistema apodrecido e fétido. Destruímos quase
todos os recursos naturais e hoje água potável é artigo de luxo na torneira dos
poderosos. Epidemias, fome e miséria são as marcas que carregamos na pele. Continentes
inteiros foram devastados, a humanidade está se dissipando. Perdemos nossa
identidade como indivíduos, como nação, como humanos.
Estamos em meio a uma guerra sem
precedentes. O mundo está dividido. Grupos de Rebeldes de todas as causas estão
por toda a parte, cada um lutando por seu próprio objetivo. Muitos países não
existem mais, são considerados “inativos”. Seus habitantes tornaram-se eternos
imigrantes, tentando encontrar abrigo em algum, lugar. A maioria não sobrevive.
Os poderosos que governam o mundo
tentam controlar a situação com seu exército super armado destruindo a tudo e a
todos que possam ser “ameaça” aos “cidadãos de bem”. Ah, os cidadãos de bem são
a elite que habita os países considerados “ativos”. Esses lugares são
constantemente vigiados, pois sempre sofrem ataques dos “rebeldes”, que sempre
são mortos. Imigrantes não podem mais entrar nos países “ativos”, tem que
aguardar uma solução do governo, ou seja, a morte. Algumas pessoas vivem nas
fronteiras dos países ativos pois de tempos em tempos eles jogam água
contaminada e restos de comida, também lançam bombas, mas isso é só um detalhe,
pois não há lugar seguro, não neste planeta.
Finalmente estou num abrigo, mas não
sei se isso é uma coisa boa. Foi estranho como cheguei, não havia planejado
isso. Estava num beco da tal cidade abandonada quando encontrei Dani. Jovem,
aparentava ter seus dezenove anos, cabelos castanhos presos numa trança mal
feita, vestida num macacão, uma blusa rosa e tênis Nike encardidos. Ela pareceu
assustada quando me viu. Minha primeira reação foi falar em árabe. Ela
calmamente tentou se comunicar comigo, falando em português, mas eu continuei a
farsa. Conheci muitos brasileiros e sempre tive bastante contato com o idioma,
mas não sei por que aquele disfarce me pareceu perfeito para a ocasião.
Dani me levou para o abrigo, me deu
comida e água. Eu disse a todos que me chamava Nayla e decidi que fazer a árabe
assustada e frágil seria minha melhor proteção, afinal não somos bem vistos no
mundo. As pessoas têm medo que possamos explodir a qualquer momento, e no meu
caso, as coisas realmente poderiam explodir se alguém descobrisse quem sou.
O tal abrigo, não pode ser chamado de
“lugar seguro”, pois poderia ser facilmente arrombado ou descoberto. O lugar é
escuro e úmido. Quando cheguei a comida e a água já eram escassas, o que me
levava a crer que logo teremos que sair daqui, então temos que racionar tudo. No
total somos oito pessoas, não posso dizer que as melhores companhias para o fim
do mundo.
Dani é a mais falante e mais ansiosa
também, anda sempre de um lado pro outro, roendo as unhas e enrolando os
cabelos. Por enquanto é a pessoa que tenho mais próxima, afinal ela me trouxe
pra cá. Sinto-me um pouco desconfortável de ter que mentir pra ela, mas é
necessário pra sua própria segurança.
Íris é uma jornalista, ela é jovem e bonita.
O olhar compenetrado atrás dos óculos está sempre procurando respostas e
soluções em seus equipamentos tecnológicos sucateados. Ela se considera a líder
do grupo, apesar de muitos simplesmente ignorarem o fato de haver uma liderança
ou um grupo.
Aparentemente há uma tensão entre
Iris e Marcos, mas ainda não sei bem o que é. Às vezes eles discutem, mas estão
sempre juntos. Talvez ele esteja apaixonado por ela. Não sei muito sobre
Marcos, apenas que ele tem duas mães maravilhosas e se orgulha muito disso,
mesmo tendo sofrido com discriminação durante grande parte de sua vida. Ele é
um militante da causa LGBTS.
Felipe sempre tenta entrar no meio das
conversas acaloradas de Íris e Marcos dando algum palpite ou falando de uma
ideia mirabolante que ele viu na internet ou em algum seriado. Ele parece bem
nerd, mas ninguém da importância ao que ele diz. É só um adolescente, diz Íris
sempre que ele fala. A Carolina passa os dias fazendo suas orações. Ela é muito
religiosa e acredita que tudo o que está acontecendo é um castigo divino pelo
pecado humano.
Além desses, tem o Leonardo, que um
tipinho bem particular. Metido a galã, vive com os botões da única camisa já
desgastada abertos, tentando seduzir alguém com seu suposto abdômen sarado. É
engraçado como ele insiste em arrumar o topete loiro todas as manhãs no único
pedaço de espelho que temos. Vive jogando seu suposto charme para Dani. Chega a
ser engraçado ver como ela se irrita.
Aparentemente Indiferentes a tudo estão
Julia e Lucas que são dependentes químicos. Passam os dias se drogando com
qualquer coisa que encontram. Parecem alienados, mas cada um tem sua própria
forma de lidar com a situação. Assim como a comida suas drogas também estão
acabando e não saberemos como eles reagirão.
Os dias se passam e tudo parece se
agravar. Não temos mais comida e a convivência começa a ficar insuportável. É
madrugada, em algumas horas sairemos em busca de suprimentos. Tudo lá em cima
parece calmo e silencioso, até que um ruído agudo e ensurdecedor nos surpreende.
Todos se deitam no chão esperando o desconhecido. Seguro firme a minha faca. Tenho
em mim uma única certeza: preciso sair daqui.
Autor do capítulo: Clege Rocha