Dica do dia : "Memórias do Subsolo", de Dostoiévski
O livro “Memórias
do Subsolo” é considerado um clássico da literatura estrangeira. Dostoiévski com sua ideia e personagem de "homem
subterrâneo" legou à ficção europeia moderna um dos seus principais
arquétipos, encontrado também em Kafka, Hesse, Camus e Sartre: o anti-herói
morbidamente obcecado com a sua própria impotência de lidar com a realidade que
o cerca. A obra traz em si muitos questionamentos tornando-se assim em um
autoflagelante monólogo no qual o narrador, é caracterizado como um rebelde
contrário ao materialismo e ao conformismo, discute e enfatiza sua visão
negativa do mundo, e aborda as principais questões do seu tempo, constituindo
uma narrativa de uma intensidade incomum. Os paradoxos são a máxima das
memórias. O narrador critica e vai de encontro a tudo. Cria uma ideia e depois
a destrói. Elogia uma conduta e depois a critica.
O enredo da
obra é extremamente instigante e ao mesmo tempo perturbador, o personagem se
define como um homem doente, que sofre do fígado, (na verdade ele imagina que
tem a doença), porque sente amargura o tempo todo. A vida o irrita e ele olha
de seu pequeno buraco de rato com profundo ressentimento. Tudo parece zombar de
sua condição, de seu apequenamento. E como vingança, já que não consegue
realizar nada concreto e mudar, se afunda cada vez mais em um mar de fel. Vem
daí, certamente, sua “doença do fígado”, nada tem um gosto agradável, nenhuma
situação é vivida sem esta reserva.
São muitos os
pontos observados na narrativa, um deles é forma pejorativa e o ódio impotente que
o personagem sente contra si mesmo, e de modo admirável, com um discurso que oscila
entre esse reconhecimento e sua projeção em todas as pessoas com que trava
contato. E esse sentimento de
inferioridade faz nascer um desejo compensatório de superioridade, que pode se
tornar patológico. O caso do personagem, sem dúvida alguma é esse, afinal
ele insiste que seu rosto deveria demonstrar, sobretudo inteligência, que seria uma maneira
de se impor aos outros. O personagem é tão bem construído que apresenta
contradições, como uma pessoa real, neste instante o que é mera ficção passa a
ser real e universal.
A riquíssima
complexidade do texto se deve ao que Bakhtin (Problemas da Poética de Dostoiévski)
chamou de polifonia. Porque as vozes dos personagens nunca são
instrumentalizadas pelo autor, não há uma tese a ser provada. Dentro dos
romances do escritor russo assistimos a verdadeiros embates ideológicos, que
seus personagens travam sem a certeza de quem sairá vencedor, ou mesmo se ainda
vão manter seu ponto de vista depois da discussão, e esse é o diferencial das
obras de Dostoiévski.
A polifonia presente em seus romances
estabelece uma visão mais humana. Os conflitos existem (a luta entre a tese e a
antítese), mas nem s
empre são resolvidos. É uma maneira de pensar muito
diferente. O importante, o que nos faz humanos, não é a superação da luta, como
se apenas ao final da vida tivéssemos o direito de afirmar que vivemos. Nada disso,
a ênfase é na luta. É isso que nos dá humanidade, que nos define e dá sentido à
vida. Ou seja, Dostoiévski é um escritor que tem uma visão verdadeiramente
humanista, porque não diminui a vida na tentativa de uma busca de sentido.
Segue abaixo
um trecho do livro:
“Entre as recordações de cada pessoa,
há coisas que ela não conta para qualquer um, somente para os amigos. Há também
aquelas que ela não conta nem para os amigos, somente para si mesma e isso
secretamente. Mas, finalmente, há também aquelas que o indivíduo tem medo de
revelar até para si mesmo, e um homem respeitável tem coisas acumuladas em
grande quantidade. E pode ser até mesmo assim: quanto mais respeitável ele é,
mais coisas desse tipo ele tem acumuladas. Eu, pelo menos, só recentemente
tomei coragem para recordar algumas das minhas aventuras passadas, as quais até
agora tinha evitado com uma certa inquietação.”(p.50-51)
Até a próxima,
Lorraine Dobrovosk
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