João Alfredo, 19 anos recém completados, negro, caçula
de três irmãos, órfão de pais biológicos, neto do crime, afilhado da favela,
sobrinho da violência e homossexual, não assumido, é claro.
Desde que Pitt atendeu aquele telefone, no dia
anterior, Alfredo, mais conhecido por Nego Fred, não conseguiu pegar no sono.
Aquela cena não parava de se repetir na sua cabeça, como uma cena em câmera
lenta. Não era possível que seu irmão tinha sido preso. Não era possível que
conseguiram pegá-lo numa tocaia. Logo, seu irmão que sabia como ninguém - dar nó
em pingo d'água. Nego Fred, precisava sair daquela cama, precisava sair daquele
quarto, precisa subir à favela, precisava decidir a vida de muitos, afinal ele
era o novo chefe do morro. Isso mesmo, chefe do morro!
- Nego ... Nego, você ouviu o que eu te disse, mano? –
perguntou já irritado, um dos traficantes de Pitt. Responde, porra – esbravejou
novamente. Po, agora você é o dono do morro, veado – disse o traficante dando
tapinhas nos ombros de Alfredo.
- E o que eu tenho que fazer? Po, Dk, eu não sei o que
fazer – confessou o novo dono do morro.
- Você vai pegar o jeito fácil – o traficante acende o
cigarro e dá um trago. Ah, e daqui a
pouco a gente tira seu irmão daquele covil. Já tenho tudo na cabeça. É só
forjar uma rebelião e a gente chega dominando – conta Dk, num tom de heroísmo invertido.
Quem diria João Alfredo, órfão de pai e mãe, adotado
por Dona Gracinha e Seu Tião, criado com todo amor e carinho, ao lado de seus
irmãos adotivos, que não tinha casa, que dormia na rua, que brigava com os mendigos
embaixo de viadutos, que pedia dinheiro no sinal, que levava um “vidro fechado”
na cara, que nunca descobriu seu paradeiro, de repente, do dia pro outro, era o
novo rei do pedaço. E ainda, homossexual.
Nego Fred sempre gostou de escrever poesia, era fã de
Clarice Lispector e leitor voraz de Rubem Braga, com a literatura seu lado
sensível se aflorava, por isso sempre escondia seu gosto particular dos seus
irmãos. O engraçado é que Nego descobriu Clarice por acaso, no meio do lixão da
cidade, enquanto catava papéis pra forrar sua cama do dia. Se é que poderia ser
chamado aquilo de cama? João Alfredo colocou Clarice no bolso e depois desse
momento, sempre que precisava de um conselho, clamava para Clarice, como uma
espécie de fada madrinha dos dias nublados e difíceis. Muitas vezes sentia-se Macabéa,
porém sem ter seu momento de estrela.
Mas,
tinha uma pessoa especial que lhe conhecia bem, sua madrinha e também mãe de
leite, Rosinha, a pessoa mais doce da favela, que lhe ensinou a gostar de
poesia e, principalmente, de arte. Alfredo amava arte contemporânea, não era
por acaso que ele vivia no Centro Comunitário da favela. Alfredo sempre se
oferecia para limpar o Centro, depois das aulas de arte de Vicente, enquanto o
jovem professor ensinava técnicas de desenhos para seus alunos, João, do lado
de fora, prestava atenção em cada traço marcado pelo professor.
Não só os traços técnicos, do professor Vicente lhe
chamavam a atenção, mas, principalmente, os traços físicos e sexuais, que lhe
deixava meio constrangido. Vicente, branco, ruivo, de cabelos longos ( e de
coque), olhos pretos, corpo franzino e um sorriso esculpido por Lilith.
A amizade dos
dois foi construída de forma simples: num dia desses, que a polícia resolveu
invadir a comunidade, para prender alguns bandidos que havia trocado tiros com
eles na semana anterior. Parecia dia de São Cosme e Damião, fogos para todos os
lados, Vicente encerrou as aulas rapidamente, desesperadamente, pediu ajuda pra
Alfredo e reuniu as crianças dentro da comunidade. No meio a uma explosão de
fogos, Vicente pegou o rádio e colocou uma das clássicas batidas de Mozart,
pedindo para que os alunos cochilassem, enquanto sentissem o som da música e pensarem
em paisagens que poderiam nascer das batidas de Mozart.
Por um momento, João Alfredo esqueceu que era negro,
favelado, filho de traficante e órfão de pais. Sentiu-se dentro de um si uma
vontade súbita de mudar o rumo de sua vida, de mudar sua condição e guiar o seu
destino, queria ser dono da rosa dos ventos.
Depois, de tamanha fuzilaria, João Alfredo resolveu
acompanhar Vicente até a entrada da favela. Esse ato de simpatia tornou-se um
mantra diário. Toda semana, o mesmo itinerário, os dois mais novos melhores
amigos conversavam sobre todas os assuntos do universo. Negro Fred queria
beijar Vicente, queria tocar-lhe, queria sentir-lhe, queria ser com Vicente, um
só. A amizade de cinema
americano cresceu rapidamente, lógico sob os olhares maldosos de muitos, porém
meu caro leitor, estamos no Brasil.
( Foto por Digo Costa)
( Foto por Digo Costa)
Foi quando, num dia desses por aí, logo depois de
assumir o cargo de chefe do crime. Tardezinha de chuva, daquelas garoas
gostosinhas, que se tem vontade de cantar “cheiro de terra molhada”, de Sandy e
Júnior. No mesmo guarda-chuva, no reflexo do mesmo sentimento censurado, no
mesmo olhar cruzado, foi que num relance de olhar, um dois pivetes da favela, de
cabelo descolorido, negro, magrelo, olhos avantajados, olhos sem vida como dos
zumbis de The Walking Dead, fotografou no ar aquela cena – hedionda, ali mesmo,
embaixo do guarda-chuva.
Alfredo cuspiu o beijo de Vicente, o demonizou, o
criticou, o menosprezou, envenenou seu coração.
- Suma de perto de mim! Eu nunca mais quero lhe ver!
Nunca mais – esbravejou Nego Fred, apertando fortemente os braços de Vicente,
que se assustara com a reação de Nego.
Vicente chorava tanto, que suas lágrimas se confundiam
com as gotas da chuva. Alfedo precisava cortar o mau pela raiz, era perigoso
demais Vicente ser exposto assim, por conta dele. Era demais ele expor assim
sua selvageria sexual, seus desejos íntimos. Era demais ...
Foi demais, quando na frente da quadrilha toda, com
uns quinze moleques ao seu redor, de repente um dos homens mais velhos, que
estava armado, com uma artilharia da pesada, jogou o infeliz menino, que por
acaso tinha presenciado, por infelicidade aquela cena.
- É esse patrão, o fdp de
merda? – perguntou um dos homens de Nego Fred, com intenções de tortura.
Nego Fred acenou com a cabeça que sim.
Foi tão rápido,
que só deu pra vê o menino zumbi, caindo no chão, pincelando o céu da favela de
vermelho vívido.
Porém, não parou por aí. Alfredo não podia deixar
nenhuma marca de sua boialagem exposta por aí. Como os outros iriam lhe
respeitar? Como que ele iria defender a honra da família que lhe acolheu?
Desceu junto com uma penca de homens zumbis até o Centro, onde depredaram tudo,
todos os quadros e armários - assim como fizera com o coração de Alfredo.
Depois desse dia Alfredo morreu, somente o Alfredo,
pois Nego Fred estava ali, pai de família, esposo de Maria Rita de Cássia, pai
de Sara, Samara e Samuel, dono do crime, e ainda, homossexual.
Caraca.... to escrevendo com o pé pq to batendo palmas! Ao mesmo tempo que esse texto é uma triste realidade mista de violência e delicadeza... poxa... reflexivo!
ResponderExcluirQue bom que gostou Bia! Sim, uma pitada de olhar poético, numa triste realidade, apesar de ímpar, ainda é realidade!
ExcluirBem tu garoto, cada palavra no lugar certo com intenções incertas. Gosto muito de ler coisas tão reais que se tornam surreais....
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